Espiritualidade no Trabalho: A Dimensão Oculta da SST
- Eduardo Ferro dos Santos
- 5 de jun.
- 4 min de leitura

A saúde e a segurança no trabalho evoluíram substancialmente nas últimas décadas. O que antes se limitava ao controle de acidentes e doenças ocupacionais deu lugar a uma abordagem mais ampla, contemplando as dimensões humanas, catalisadas recentemente por fatores psicossociais. No entanto, há uma dimensão essencial ainda negligenciada: a espiritualidade no trabalho.
Paradoxalmente, enquanto os avanços em SST são comemorados em termos normativos e técnicos, os índices de burnout, depressão, ansiedade e o adoecimento por falta de sentido continuam a crescer . O trabalhador moderno é, ao mesmo tempo, mais protegido e mais vazio. Essa contradição revela uma lacuna não abordada pelas abordagens tradicionais: a desconexão entre o fazer e o ser, entre a produtividade e o propósito.
Essa desconexão tem raízes na exclusão sistemática da dimensão espiritual da vida laboral. Ao reduzir o trabalhador a um corpo produtivo e uma mente executora, ignora-se sua busca por sentido, sua necessidade de pertencer a algo maior e sua vocação para transcender o ordinário.
Ao falar em espiritualidade no trabalho, não estou propondo a institucionalização da fé, muito menos a imposição de crenças. Trata-se de reconhecer que a espiritualidade é parte integrante da identidade humana, expressando-se como:
Busca de sentido existencial;
Valores que orientam a conduta;
Sentimento de pertencimento e contribuição;
Desejo de plenitude e coerência entre vida pessoal e profissional.
Organizações que ignoram essa dimensão promovem ambientes funcionais, mas não significativos. Funcionários executam tarefas, mas não se ligam ao propósito, tanto no sentido pessoal quanto organizacional.
A ausência de espiritualidade no ambiente de trabalho pode se manifestar de várias formas:
Adoecimento por falta de propósito;
Cinismo organizacional e perda de confiança;
Individualismo excessivo e competitividade tóxica;
Cultura de “resultados a qualquer custo”, que gera culpa, medo e alienação.
Tais sintomas, ainda que mascarados por programas de bem-estar, psicossociais e até discursos motivacionais, revelam um mal-estar profundo: o trabalho tornou-se desumanizado, mesmo que tecnicamente seguro.
Não sou só eu quem faço esta reflexão. A Organização Mundial da Saúde (OMS) já reconhece a espiritualidade como componente do bem-estar em sua definição ampliada de saúde. Trabalhos como os de Silva Filho & Ferreira (2015), Silva & Siqueira (2009), Regos et al (2008) também destacam estes fatores. El Khatib (2024) aborda diretamente a produtividade como um resultado positivo quando as organizações se preocupam com o bem-estar espiritual de seus funcionários. Essa descoberta sugere a ligação entre espiritualidade no local de trabalho e melhor desempenho.
Abaixo estão listadas estratégias respeitosas, inclusivas e baseadas em valores universais, e não em imposições religiosas, que podem ser adotadas por organizações que desejam cultivar um ambiente de trabalho mais íntegro, acolhedor e espiritualmente saudável:
Coerência entre discurso e prática: Definir valores organizacionais como respeito, integridade, empatia, serviço, gratidão e justiça — e garantir que sejam vivenciados cotidianamente por todos, da liderança às equipes. Esses valores devem ir além de quadros decorativos, devem inspirar comportamentos reais.
Liderança ética e servidora: Promover lideranças que inspirem pelo exemplo, que ouçam antes de impor, que sirvam antes de comandar. A autoridade genuína nasce da integridade e do cuidado com o outro.
Diálogos significativos: Estimular conversas sobre sentido, propósito e bem comum. Essas trocas ampliam a consciência coletiva e fortalecem vínculos. Incluir também reflexões, práticas e conteúdos relacionados à espiritualidade como parte integrante de iniciativas de saúde organizacional.
Ambientes de pausa e reflexão: Disponibilizar salas de silêncio, meditação, oração ou simples introspecção, respeitando a diversidade espiritual e emocional dos colaboradores.
Sentido coletivo de propósito: Ajudar cada colaborador a perceber como sua atuação contribui para a missão maior da organização. Isso fortalece o engajamento e o pertencimento.
Projetos com impacto social: Engajar equipes em ações que transcendam os muros da empresa e gerem transformação na sociedade, reforçando o valor do trabalho com propósito.
Valorização de histórias de superação: Compartilhar trajetórias inspiradoras dentro da própria organização, reforçando o poder do sentido e da resiliência no trabalho.
A espiritualidade no trabalho não tem como foco a criação de espaços de oração ou a permissão para práticas devocionais. Ela está presente na forma como se lidera, se escuta, se serve, se respeita e se constrói juntos. Quando o trabalho é vivido com valores que transcendem o utilitarismo, ele se transforma: deixa de ser apenas tarefa e se torna vocação.
Espiritualidade não é um “plus”, mas um pilar da saúde integral ao lado do físico, do mental e do social. No entanto, poucos ambientes laborais operam com essa consciência.
Ignorar essa dimensão é perpetuar um modelo fragmentado de SST, tecnicamente correto, mas espiritualmente empobrecido.
A espiritualidade no trabalho não é apenas necessária. É urgente.
Referências:
Silva Filho, A. L. A., & Ferreira, M. C. (2015). O impacto da espiritualidade no trabalho sobre o bem-estar laboral. Psicologia: ciência e profissão, 35(4), 1171-1187.
Silva, R. R. D., & Siqueira, D. (2009). Espiritualidade, religião e trabalho no contexto organizacional. Psicologia em Estudo, 14, 557-564.
Regos, A., Cunha, M. P., & Souto, S. (2008). Espiritualidade nas organizações e comprometimento organizacional. RAE eletrônica, 6.
Khatib, A. S. E. (2024). Espiritualidade no ambiente de trabalho em tempos de pandemia de covid-19: um estudo de caso múltiplo sob a ótica dos gestores de RH brasileiros. Revista Contemporânea, 4(1), 311–342.
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